Era o ultimo dia do ano. Assim
todos diziam. Eu pessoalmente não me importava com isso. O ano não passa de uma
convenção estabelecida pela estupidez do calendário. Tudo que sei é que estamos
morrendo o tempo todo e que o tempo passa sem regra.
Afinal de contas hoje tenho cento
e quatro anos e não saio nunca deste
quarto de fim de mundo onde ninguém me visita. Onde tudo que existe é minha consciência
teimosa, que insiste em ser quando o meu
próprio corpo já me desconhece.
Não sei se chamo isso de vida. Me considero uma sucata esquecida em um canto de nada a
margem da existência. Depois de tantos anos e tantas coisas vividas, percebo
que tudo acaba em pó e esquecimento. Família, trabalho, sucesso e realizações de
todo tipo, todas as coisas boas e más que vivi um dia, não
passam agora de pálida lembrança. Não fazem mais diferença. Nem de longe lembro
quem já fui um dia no acontecer do mundo.
É o ultimo dia do ano. Mas eu nem
sei mais o passar dos anos. Minha época já se foi e o mundo de hoje não me
interessa. Vocês entenderão isso caso vivam mais do que o suficiente. Chega
mesmo uma hora em que continuar vivendo se torna um capricho. Medo da morte é
um privilegio dos jovens. Depois que todo mundo que amamos morre e que perdemos
a saúde a morte passa a ser um privilegio.
Tive uma amiga que morreu no dia
seguinte a morte da filha. Ela simplesmente desistiu de viver e morreu. Isso acontece.
Muita gente desiste da vida e acaba morrendo. Não são raros os casos em que adoecemos de
desgosto ou tristeza. Mas é claro que ninguém quer ouvir sobre isso.
É o ultimo dia do ano.... Não sei
se chego ao ultimo dia do ano que vem.
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